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terça-feira, fevereiro 13, 2007

"Papai eu quero ser policial quando eu crescer" Renato Russo




Ao decompor a trajetória do criminoso nazista Adolf Eichmann, a filósofa alemã Hannah Arendt deu de cara com um fenômeno que ela batizou de “a banalidade do mal.” Nada mais adequado para definir o comportamento de Eichmann. Ao ser julgado, em Jerusalém, apresentara-se como mero cumpridor de ordens.
Eichmann relatara detalhes da rotina maligna da Alemanha hitlerista. Contara como eram planejados os deslocamentos de levas de judeus para as câmaras de gás. Rememorara, em minúcias, uma das reuniões que mantivera com oficiais da SS, a polícia nazista.

Ele os havia convocado para acertar a execução de mais uma leva de judeus. Reunira-se com eles por uma hora e meia. Ao final, serviram-se de aperitivos. Depois, almoçaram. “Uma pequena e íntima reunião social”, no dizer de Eishmann. A mais pura representação da “banalidade do mal”, nas palavras de Arendt.

Corta para o noticiário do Brasil da última semana. Quarta-feira. A TV derrama sobre o tapete da sala imagens inusitadas. Vídeo amador. Cenas de uma blitz policial de rotina, no centro de São Paulo. Brasileiros comuns, de costas, braços levantados, mãos contra a parede. PMs igualmente comuns distribuíam chutes, socos... Terminada a pancadaria, ninguém foi preso. Retiveram-se bolsas e mochilas. Empilhadas, viraram fogueira (assista ao vídeo acima).

Quinta-feira. Irrompe em cena um desses acontecimentos que produzem a sensação de que a vida fugiu ao controle. Ocorrera na noite da véspera. Os relatos estão por toda parte: rádio, TV, internet. Impossível não saber. Um grupo de marginais abordara, num subúrbio do Rio, a comerciante Rosa Cristina Fernandes. Queriam o carro dela.

Rosa não opôs resistência. Desceu. Tirou do veículo a filha Aline, 13. No instante em tentava destravar o cinto de segurança do filho João, 6, os bandidos arrancaram. E lá se foi João, dependurado do lado de fora do carro. Arrastaram-no por sete inesgotáveis quilômetros. Abandonaram-no numa rua sem saída, ao lado do Corsa sujo de sangue, corpo dilacerado, sem cabeça, ossos à mostra.

Em meio à brutalidade, espocavam as últimas notícias recolhidas da cena política. O PSDB encomendara pesquisa para saber o que o eleitor pensa dele. O PFL decidira trocar de nome. O PT lavava roupa suja em público e tricotava a anistia do Zé Dirceu. O PMDB, em dúvida entre Temer e Jobim, inquietava-se com a demora de Lula em ratear os cargos.

Assim como na rotina de Eichmann, o que espanta na realidade brasileira não é propriamente a anormalidade. Espantosa é a normalidade que resplandece em torno do inaceitável. É como se todos os discos de Cazuza tivessem arranhado num único verso, repetido à exaustão: "o tempo não pára... e as idéias não correspondem aos fatos!"

É como se o país tivesse sido condenado a assistir na TV a um vídeo sem fim, registrado por um cinegrafista nada amador. Mostra o Brasil oficial arrastando a alma do Brasil real pelas vias da insensatez. Exibe a banalização do mal levada às suas últimas conseqüências.

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